"Terei toda a aparência de quem falhou, e só eu saberei se foi a falha necessária." C. Linspector

sábado, 13 de novembro de 2010

Nem tão difícil...

Ele estava sentado a sua frente, com um prato de lentilhas, vagem, ovo e couve-flor que tinha relutado em comer. Queria macarrão. E isso tinha gerado um leve discussão com o pai e a madrasta, que tinha se juntado com outra porque não queria cortar o cabelo e porque queria ficar no computador. E no final de tudo acrescentou: Eu não acredito que a vida seja tão difícil assim!. Ela tinha sentado ao seu lado na mesa e folheava uma revista, quando ele espalmou a mão no nariz e começou a coçá-lo freneticamente, deixando sua ponta vermelhinha. Ela não pode conter a água que vinha do fundo e marejava seus olhos quando disse que ele fazia isso igual a sua mãe. Exatamente igual. E não pode impedir que essa mesma água rolasse maçãs do rosto abaixo quando ele respondeu: E igual a você, Nina!. É, verdade.
Ela nunca imaginou que pudesse amar tanto. Ela acha que nunca palavras sairão com mais verdade e pureza da sua boca quanto quando diz que SEMPRE estará ao seu lado, que nunca vai lhe abandonar. Hoje mesmo alguém disse a criança que ele era muito novo, que não tinha passado por nada e que não conhecia a vida. Ela não achava isso. Ele nasceu e conviveu com a doença, debilitação, desespero, hospitais, lágrimas, insegurança, inconstância, morte, depressões, brigas... Acha que ele passou por coisa que muita gente grande que enche a boca pra dizer que o tempo traz experiência não sentiu nem o cheiro. E foram sempre os dois, juntos. Ela cuidando dele e ele, sem saber, mantendo ela em pé. E ele pode não ter tido consciência imediata de tudo no momento, mas aquilo com certeza está gravado no peito daquela criança de apenas sete anos. E mesmo ela tendo feito o melhor que conseguia, ainda não era o melhor que ela queria.
Ela se anulou muito, mas não o fazia mais. Agora era uma parceria, uma cumplicidade invisível. Ninguém havia passado as tardes que eles passaram. Ninguém esteve ao lado dela e nem ao dele nas tardes que antecediam as visitas no hospital, um estava ao lado do outro. No ônibus lotado, na lanchonete, no cinema, na pediatra, nas festas escolares, nas compras e visitas e caronas. E principalmente quando não se tinha mais nada para fazer, quando o silêncio era abissal e o tempo teimava em passar mais lentamente, e o tempo teimava em passar.

É, como ele disse a vida não pode ser tão difícil. Se depois de tudo ele está brincando e ela com ele brincando também.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Distância

Eu quero assim
Eu necessito assim
Cultivando o medo do toque
da possibilidade
E essa certeza
esse aperto
Pode se desfazer
pode ser casual

e assim eu não suportaria
(...)

E para manter vivo
Caminho na ilusão
A ilusão da possibilidade me supre

(e eu falo sem medida, desfaço a malandragem. e falo.)

É um jogo
e eu prefiro não saber as suas cartas
Prefiro a idéia de que as minhas
não são suficientes.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Ouvir

Ouvir. Se deixar levar pela conversa e poder ver o mundo por outra perspectiva, reflexões de atos que não são seus, opiniões que não são suas. Olhar o outro e compreendê-lo pela sua fala, palavras, gestos. Trazer para si idéias, caminhos já trilhados e os virgens também. A animação pelas conquistas, vibração. A frustração. Aos poucos o quero mais, desejo de ver o que tem adiante e que se perde no egoísmo do dia-a-dia. E eu quero mais, sem o distanciamento, sentindo o envolvimento, as palavras e sensações me rodearem. Curiosidade. Fazer parte, se permitir. Se deixar tocar, tocar em troca. Sem tela ou direção ou roteiro, a carne nua e crua, a voz.
Ouvir.

Porque sem querer, me abrindo assim, também me abro a mim.

domingo, 10 de outubro de 2010

Vermelho

nos pés
labaredas
salamandras pelos calcanhares
bacia
nuca
...

(e sobe.)

firmeza no pisar
ânsia por chão
mais chão
materialização
da vontade
desejo

do Sol
ardor
suor

(e mais.)

mas de um pé de vento
recorda-se o limite
seguro
da fuga fácil:
- sai com acetona.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Indesejado

Ela estava em seu canto. Ele chegou meio que se arrastando, contornando obstáculos e sorrateiro para agarrar-se cuidadosamente em sua perna. Por dias ela não percebeu, contava suas dores, e talvez pelo tempo que não o via não deu por conta mesmo. Quando deu por si arregalou-se e sacudiu o pé nervosamente na esperança de desgrudá-lo dali.
Sai! Te conheço bem e não te quero aqui. Vai embora! Xispa!

Mas volta.

domingo, 3 de outubro de 2010

O carro estava menor e mais abafado naquela manhã. Ao aceitar a carona imaginou o desconforto, mas não naquela medida tamanha. Ela tinha voltado de viagem e nem um abraço, nenhum interesse. Havia sido recebida pelo silêncio abafado que naquele dia dava abertura para o retorno das mesmas cobranças usuais - Mas você ainda não fez isso? Você não corre atrás, não te entendo. O soco no estômago de muito voltava e a respiração pesava e as pontas dos dedos esfregavam na pele de cima das têmporas como se fossem arrancá-las - Não vai dar tempo de você me levar né? Então eu vou daqui mesmo. O asfalto que ela pisava nunca tinha sido tão libertador, nunca dado tanta amplitude. Quando pensou que podia respirar as pedras portuguesas da calçada de repente pareciam querer sugá-la e o nó na garganta, as unhas a arrranhavam e uma lágrima teimosa no canto do olho lutava para cumprir sua função que ela obstinada impedia. As mãos nervosas dentro da bolsa procuravam o colo costumado. Fone. ("The dog days are over, the dog days are done [...]). A música era seu consolo, seu alento e ar. Lembrou que sempre fora assim. Aos sete fechava os olhos sentida para ouvir a Beatriz de Milton, não entendia muito bem aquele aperto do peito ("E seu eu pudesse entrar na sua vida."), mas o mantinha. Aos dez a guitarra gritante, cantante de Mark Knopfler a arrepiava a espinha, a pele e o corpo inteiro, pulsava dentro em Sultans of Swing. Mas hoje a música tinha mais uma função, era colo e ombro e carinho na falta do biológico. As letras punham em sua boca o que ela não se permitia, conversava com cada instrumento, a melodia a conduzia. Pôs seus óculos de pôr-do-sol e andava cantando sentida, parecendo que o mundo a ouvia. Parecia que ela se ouvia e se dava razão. ("Every second counts on a clock that's tickin', gotta live like we're dying.) Pronto, chegara ao seu destino menos pesada. A música como sempre tinha entranhado em sua pele, libertando seus poros dos tampões, permitindo então a expiração, o doloroso e lento expurgo do que havia de dolorido dentro dela. Do que conseguia pelo menos. Abria sua mente e seus olhos fazendo com que visse mais cor.

"A música preenche sua falta, motivo dessa solidão sem fim [...]."

sábado, 2 de outubro de 2010

Óculos

Ela, óculos na ponta do nariz. Depois de um banho  para tirar aquele cheiro de diversão desmedida. Ela não é velha, mas os óculos a fazem lembrar de que já passou por muito, e que aquela noite foi somente mais uma. Somente mais uma de risos, danças, mediações e ilusões escolhidas. Mais uma.

E ela cansou. Por hoje.

sábado, 25 de setembro de 2010

Cola e fita.

"Você é um homem bom. Você é bonito, gentil, inteligente e bom... Você é perfeito. Mas eu estou ocupada, juntando eu mesma com fita e cola. E um pedaço de mim queria que você não tivesse jogado golfe porque estaria todo colado também, e talvez estivesse onde eu estou. Você é demais pra mim nesse momento, porque estou ocupada com cola e fita." Miranda Bailey (Grey's Anatomy, 7.01)


É, essa sou eu. Essa sou eu desde 11 de abril de 2008. Essa sou eu desde que minha mãe se foi - acho que até antes disso. Desde então não estou mais ao lado de quem eu amo, apareço e desapareço. Desde então não consegui manter nenhum relacionamento, fugi de todos. Desde então não me reconheço. Desde então tem um grito dentro de mim, unhas, lágrimas presas em um canto qualquer. E eu não me reconheço.
Há sete meses estou em depressão. Foi quando a vida começou a voltar ao normal, as pessoas voltaram a sorrir e eu não tinha mais a desculpa de cuidar de tudo e todos pra me defender. Vácuo. 
Sou toda sorrisos, toda força. Mas aqui dentro essas unhas... A culpa e a falta de compreensão própria por essas fugas.


Essa frase grifada aí de cima é da Miranda para o pretendente que estava jogando golfe enquanto ela assistia a um massacre em seu hospital. Mas também é minha, depois de três anos cuidando da minha mãe, a perdendo, cuidando do meu pai, da casa, do meu irmão e irmã e... BAM! Quando eu deveria respirar o meu mundo caiu na cabeça, estilhaçando o que restava, o que com muito esforço conseguia manter são. A vida, que voltou a se tornar corada era exatamente o lugar no qual eu não me encaixava. E eu fugia. E a tortura de fugir era diária.


A culpa ainda existe. O grito. O distanciamento que foi criado entre mim e pessoas que amo não vai ser diminuído agora. Não vai porque exatamente agora eu percebi que mereço estar ocupada. Com cola e fita.